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O direito individual homogêneo à luz da ampla defesa

Sumário:


Resumo: Este artigo pretende dar à expressão “origem comum”, que compõe o núcleo conceitual de direito individual homogêneo, uma interpretação que se coadune com o princípio constitucional da ampla defesa.


Palavras chaves: direito individual homogêneo, origem comum, hermenêutica constitucional, ampla defesa.


I - INTRODUÇÃO


Este artigo pretende trazer à discussão um elemento pouco explorado na conceituação do que venha a ser direito individual homogêneo para fins de ajuizamento de ações coletivas, notadamente ações civis públicas.


Trata-se da interpretação desse conceito à luz do princípio constitucional do acesso ao Judiciário sob o prisma daquele que normalmente é esquecido nessa discussão, o réu. Sob o prisma do réu o acesso ao Judiciário se dá através dos princípios da ampla defesa e do contraditório, consagrados no inciso LV do art. 5º da Constituição Federal como garantia fundamental.


É sob a luz do princípio da ampla defesa que se busca um conceito de direito individual homogêneo que garanta às partes o direito de alegar e instruir o processo em busca da comprovação da existência ou inexistência do direito.


II – Da ampla defesa

Em texto publicado em 2001, fazendo referência a Celso Bastos, Alexandre Coutinho Pagliarini lembra da profundidade do que se denomina ampla defesa salientando que “Ao leigo, pode parecer que o conceito de ampla defesa se resume na apresentação de peças notadamente defensivas, tais como contestações e defesas prévias. Esclareça-se que a ampla defesa não pode ser reduzida à apresentação de uma ou de duas peças, mas abrange as múltiplas direções tomadas, se traduzindo isso, para Celso Bastos (2000:226), "na inquirição de testemunhas, ora na designação de um defensor dativo, não importando, assim, as diversas modalidades, em um primeiro momento". (Pagliarini, 2001 (fev))


Assim, é sempre importante lembrar que ampla defesa não pode significar simplesmente dar ao réu a oportunidade de produzir uma defesa nos autos, mas sim a oportunidade de produzir uma defesa eficiente, para o que ele deve possuir clareza quanto à postulação e seus elementos, além de ter a possibilidade de produzir as provas correlatas às suas alegações.


Não se quer dizer com isso que a ausência de provas por incúria da parte ou por dissociação das alegações defensivas com o mundo fenomenológico constituam violação à ampla defesa, mas sim que a postulação realizada e o procedimento judicial ou administrativo devem propiciar, além da produção da peça defensiva, a produção de prova que corrobore o que se sustentou, seja a título de contra prova quanto aos fatos ditos constitutivos, seja a título de prova daqueles impeditivos, extintivos ou modificativos da pretensão inicial.


Se a possibilidade, mera possibilidade, de instrução estiver à disposição do réu, estará atendido o princípio da ampla defesa neste aspecto processual, ainda que ele não a aproveite, para o que é importante o sistema de preclusões que concilia esse caro princípio com a duração razoável do processo.


Por outro lado, até por estar previsto no art. 5º da Constituição Federal e no título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais” não se tem dúvida acerca da importância desse princípio para o Estado Democrático.

A ampla defesa está consagrada ainda em nosso ordenamento através da adesão do país ao Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre os Direitos Humanos), recepcionado pelos Decretos 678/92 e Decreto Legislativo n. 27/92, quando preceitua em seu art. 8º que:


Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou para que se determinem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. (grifo ausente no original)


É importante, por conseguinte, fixar a ideia de que a ampla defesa, além de deter condição de garantia constitucional fundamental, não tem o seu alcance limitado à possibilidade meramente formal de apresentação de defesa, mas sim à possibilidade efetiva de produção da peça e de realização das provas e contra provas que cabem ao réu.


III – Da hermenêutica constitucional do processo

Fixada a importância e a profundidade da ampla defesa, esta última com ênfase no direito de instruir sem esquecer dos demais aspectos que a compõe, é imperioso que se reconheça a importância dos princípios constitucionais na hermenêutica das normas ordinárias, inclusive de caráter processual.


Já na vigência do Código Buzaid era reconhecido o influxo dos princípios constitucionais, principalmente a partir da Constituição de 1988, sobre a interpretação do Direito Processual, em suas mais diversas áreas.

Em texto de 2010, Janete Ricken Lopes de Barros já lembrava dessa influência ao anunciar que “O direito processual tem, dessa forma, sua base no direito constitucional, que lhe fixa os fundamentos essenciais, mormente quanto ao direito de ação e de defesa e ao exercício da jurisdição, função soberana e indelegável do Estado. Ajustando-se essa afinidade à circunstância de que são os princípios que distinguem e revelam os sistemas processuais, conclui-se que, por trás dos princípios que informam as normas processuais, sempre está um comando constitucional. Interligam-se, dessa forma, os preceitos constitucionais e os princípios que informam o processo, razão pela qual muitas vezes se identificam nos dois ramos do direito os mesmos princípios.” (Barros)


O Código de 2015, até por ter sido elaborado após a Constituição de 1988 e depois de ampla discussão doutrinária sobre a influência dos princípios constitucionais sobre a interpretação das normas processuais, trouxe norma explícita sobre o que era apenas construção da doutrina e jurisprudência, consubstanciada no art. 1º que prevê:


Art. 1º O processo civil será ordenado, disciplinado e interpretado conforme os valores e as normas fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil , observando-se as disposições deste Código.


Não se admite, portanto, uma interpretação das normas processuais sem a subsunção delas às normas e princípios consagrados pela Constituição.


IV – A “origem comum” como núcleo do conceito de direitos ou interesses individuais homogêneos


É lugar comum dizer-se do avanço que as tutelas coletivas representam para a prestação jurisdicional eficiente, para se garantir efetividade no acesso ao Judiciário. O próprio crescimento populacional e a crescente complexidade dos arranjos sociais impõem soluções de maior amplitude para que a prestação jurisdicional atinja o maior número de cidadãos, propiciando a realização dos direitos materiais.


Para isso a contribuição das medidas de tutela coletiva dos direitos apresenta-se como instrumento precioso, de inegável racionalidade.


Inspiradas nas ações de classe norte americanas, encontraram reconhecimento legislativo, inicialmente, no Código de Defesa do Consumidor e na Lei de Ação Civil Pública. Antes disso, a Consolidação das Leis do Trabalho previa a possibilidade de defesa coletiva de interesses individuais para o reconhecimento de insalubridade e periculosidade, conforme § 2º do art. 195.¹


Merece especial atenção o Código de Defesa do Consumidor que pretendeu conceituar os interesses difusos, coletivos e individuais homogêneos no parágrafo único do art. 81. No que importa ao presente texto o referido artigo conceituou os interesses ou direitos individuais homogêneos como os “decorrentes de origem comum”.


Dessa expressão a doutrina e jurisprudência identificam algumas características determinantes do conceito, elementos de distinção com relação aos direitos individuais heterogêneos e, até mesmo, em relação aos direitos difusos e coletivos. As mais apontadas são a possibilidade de determinação dos sujeitos detentores do interesse ou direito, a existência de uma tese jurídica comum para a postulação e a divisibilidade do objeto que propicia que cada interessado ajuíze a sua própria ação.


No entanto, ao ler essas características é marcante a ausência de alusão à possibilidade de instrução única para a caracterização da tese jurídica comum e, portanto, da homogeneidade do interesse ou direito.


Neste sentido, as características são traçadas sempre sobre o viés de acesso ao Judiciário pelo autor, olvidando que a defesa coletiva dos interesses não pode representar um subterfúgio à violação ao direito do réu de ampla defesa. Em que pese a exaltação à racionalidade da tutela coletiva de direitos, essa racionalidade cessa quando viola o direito do réu de se defender, nisso incluído não somente a própria elaboração da peça defensiva, mas também a produção das provas necessárias.


Não se concebe que no conceito de interesse ou direito individual homogêneo se restrinja a análise a uma tese jurídica comum a todos, desprezando-se que o fato constitutivo seja individual e específico ou que os fatos obstativos ou extintivos, a serem alegados pelo réu, também demandem uma prova individualizada para se chegar à conclusão da existência do próprio direito (an debeatur).


Infelizmente é comum a jurisprudência, notadamente aquela oriunda da Justiça do Trabalho, fazer a análise conceitual somente a partir da tese comum, deixando de remeter à possibilidade instrução única para se saber da existência do próprio direito invocado.


A tese comum deve ser considerada como elemento inicial de identificação do interesse ou direito individual homogêneo, mas não como elemento suficiente. A partir da tese comum deve ser identificado se todos os fatos constitutivos, impeditivos, extintivos e modificativos são passíveis de prova no mesmo processo. É absolutamente possível que mesmo havendo uma alegação comum a todos na petição inicial, a instrução deva ser individualizada.


Ressalte-se que o rótulo do objeto não deve determinar a origem comum. A título de exemplo, um objeto de vínculo de emprego pode ou não ter a característica de direito individual homogêneo. Quando ainda era pertinente a tese da subordinação estrutural, a alegação de trabalho na atividade fim da empresa representava uma origem comum que era passível de instrução única.


Diversamente, um mesmo pedido de vínculo de emprego a partir do conceito clássico de subordinação, tal como positivado na CLT, demanda instrução individualizada, ainda que a petição inicial alegue que a situação de todos os trabalhadores é a mesma, que todos eles estejam subordinados a um determinado preposto da empresa. As objeções da empresa podem ser individualizadas e, portanto, o próprio direito demanda uma instrução para cada interessado.


Desta forma, a origem comum não pode ter o seu conceito restrito à tese inicial comum a todos os atingidos, devendo ir adiante e perquirir se a defesa também poderá ser comum a todos, apontando-se especificamente para a direção de instrução única.


É importante lembrar que essa conceituação que leva em consideração a viabilidade defensiva não é novidade pois já no Código Buzaid, por alteração introduzida pela Lei n. 8.052/1994, havia previsão para limitação do litisconsórcio ativo que pudesse “dificultar a defesa”, conforme parágrafo único do art. 46 daquele Código.


No Código atual a previsão se repete no §1º do art. 113, não deixando dúvidas de que as ferramentas de coletivização do processo não podem representar óbice ao pleno exercício do direito constitucional de defesa.


Apesar do referido artigo referir-se ao litisconsórcio não se pode ter dúvidas de que o raciocínio que o inspira é plenamente aplicável às substituições processuais já que se encontram presentes os mesmos elementos, ou seja, a pluralidade subjetiva de pretensões a demandar uma prova específica por interessado.


V – Das conclusões

A exposição acima visa concluir que o conceito de direito ou interesse individual homogêneo não pode ficar restrito à tese comum para a configuração do que seja origem comum, devendo perquirir-se ainda se a tese de fato e de direito trazida pela parte autora pode ser objeto de prova e contra prova em um mesmo processo sem prejuízo a ambas as partes, incluindo-se aí a limitação do número de testemunhas dos respectivos procedimentos.


Bibliografia


Barros, J. R. (s.d.). O novo Processo Civil à luz da Constituição Federal de 1988.


Pagliarini, A. C. (2001 (fev)). Contraditório e ampla defesa: direitos humanos e principais garantias processuais. Revista dos Tribunais, Vol 784, p. 459-473.

 

¹ § 2º - Argüida em juízo insalubridade ou periculosidade, seja por empregado, seja por Sindicato em favor de grupo de associado, o juiz designará perito habilitado na forma deste artigo, e, onde não houver, requisitará perícia ao órgão competente do Ministério do Trabalho.

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